Do deposito em que vivo vejo as janelas de familias do lado de fora.
Vejo como é diferente as cores deles,de suas cortinas, das confortaveis redes penduradas na varanda como que suspensas no ar, como são bonitas suas casas sem grades nas janelas como deve ser confortavel o bom dia que o sol lhes dá, como devem ser cheirosas as plantas do seu jardim.
Enquanto isso rego uma pimenta seca que alguem cultiva no canto sujo do deposito ao lado de um monte de lixo que não bem o que é. Alias não sei do que se trata a maioria do entulho daqui, as vezes não sei ao certo o quando sou diferente dele, tem ficado cada vez mais recorrente essa sensação de... Entulho.
Essa sensação estranha de saber que tem um monte de coisa que já serviram pra alguma outra coisa num determinado momento mas que agora estão ali só amontoadas de maneira que nem se sabe direito o que são, me lembro que foram uteis, que tinha gente que adorava, lembro que eu adorava também, hoje parecem tão velhas essas coisas, e tenho medo de olhar pra isso todos os dias e achar que cada vez se parece mais com lixo. E pensar que esse lixo é tudo que eu tenho e que a vida toda trabalhei pra consegui-lo.
Não posso jogar fora.
Então mexo e remexo nele procurando alguma coisa nova, tentando encaixar novas peças pra ver se essa outra coisa me serve melhor pro que eu quero construir seja lá o que isso for. Tenho que ser forte. Sempre trabalhei melhor na luz mas com o escuro constante aqui do deposito fica mais dificil, é dificil se alimentar também principalmente com esses ratos e baratas que ficam roendo de noite, entrando debaixo do meu colchão, fazendo barulho na minha orelha que nojo desses ratos. Que nojo de mim que quando me olhei no espelho estava igualzinho a um deles.
Mas ainda tenho um núcleo de cor em mim, a aquarela que guardo no centro do peito, que os ratos não comem, porque eu não deixo, que as baratas não passam nem sujam, que é lipo como o mais cristalino dos diamantes, isso nunca vai virar lixo, nunca vai virar entulho, eu se quer tocaria isso no depósito esse eu carego comigo suspenso sem tocar em nada, só na borboleta...
Ai que linda é a borboleta! É a luz azul daqui desse planeta, se tem algo que consigo ver nessa névoa densa e escura é justamente a luz azul dessa criatura, tão linda, tão limpa, tão leve borboleta com seu voar ocilante seu pouso inquieto como quem não sabe se fica ali ou se vai pra outro lugar,se eu pudesse ao menos descrever o quanto o mundo pára...
...
A mágica que ela faz de trasformar o venenoso pó de ferro em porpurina, os úmidos buracos de goteiras em raios de sol como a disposição incomoda dos entulhos se tornam casas na praia e jardins de flores, me convençendo que a chuva que cai é pra lavar as coisas e não pra emposar água e te deixar doente, é pra ela que quero ofereço minha aquarela mesmo não sabendo ao certo o que essa aquarela vai pintar.
Mas uma coisa é certa, meu corpo não morre antes de usar o ultimo resquicio de energia em busca da mais bela pintura! Que a luz que eu tenho vire um FAROL! Que ilumine esse planeta todo!Que as texturas e cores que eu vejo que a vida que eu sinto sejam vistas por outros alguéns que sirva de vento pra dissipar suas fumaças, de água pra matar as sedes que não sabem que tem, de terra pra se sujar de fogo se for preciso! Que essa aquaréla pulsante desfaça os intrincados nós das dores do meu peito, e cure os hemisférios podres do meu corpo!
E esse depósito...
Vai ser arrumado.
Você vai ver.